quarta-feira, 16 de dezembro de 2009

AS ORIGENS DA JUSTIÇA ADMINISTRATIVA

“[...] o Contencioso Administrativo, muito mais do que «uma “invenção liberal”, determinada pelo princípio da separação de poderes», é uma «herança do Antigo Regime» [...]”

AS ORIGENS DA JUSTIÇA ADMINISTRATIVA

Perante a afirmação de que o Contencioso Administrativo é, do ponto de vista histórico, uma síntese entre dois modelos – o modelo do Ancien Régime (tese) e o modelo liberal (antítese) –, impõe-se proceder a uma breve contextualização para que possamos compreender as suas dores de nascimento.
Em França, naquela época, o processo judicial em matéria administrativa era inexistente, sendo que os tribunais continuaram, mesmo após a revolução, nas mãos da antiga nobreza, que encabeçava a resistência à implantação do novo regime. Perante este cenário, com a Revolução surgiu legislação no sentido de impedir as intromissões dos tribunais comuns no domínio da Administração. Por outro lado, o sistema francês traduz um afastamento do seu modelo original: o sistema britânico. A diferença essencial entre os dois sistemas reside no conceito de Estado, o qual terá uma importância decisiva em toda a génese do sistema francês. No sistema britânico, pelo contrário, opera um conceito análogo – a Coroa, que abarca toda a organização administrativa, existindo uma relação de independência entre esta e o Parlamento. Neste sistema os Tribunais são entidades autónomas.
Com a Revolução Francesa, assiste-se à colisão de duas concepções ideológicas distintas: a concepção ditatorial, representada pelas ideias de MAQUIAVEL, BODIN, HOBBES e ROUSSEAU (devendo-se a estes dois últimos a teorização do elemento democrático) e a concepção liberal, encabeçada por LOCKE e MONTESQUIEU. A grande novidade subjacente à Revolução foi o princípio da separação de poderes, sendo que o modo como este foi interpretado propiciou a inclusão da função jurisdicional na função administrativa. Por outras palavras, tal interpretação terá sido influenciada pelo conceito de Estado vigente no sistema francês àquela data e pela consequente dificuldade em conceber a submissão do Estado aos próprios tribunais.
Em termos práticos, a influência subjacente a esta interpretação da teoria da separação dos poderes deve-se à própria conjuntura herdada do Ancien Régime. É que, antes do triunfo da Revolução, os tribunais detinham um importante papel na luta contra a concentração do poder real através dos institutos do direito de registo (veto do tribunal em relação às decisões régias), por um lado e das censuras (instrumentos de controlo das decisões administrativas), por outro. Os juízes eram, portanto, activistas no processo político, na defesa das pretensões da nobreza na luta contra a concentração régia do poder. Como consequência desta conjuntura, os revolucionários receavam que o controlo da Administração pelos tribunais comuns pudesse por em causa a nova ordem estabelecida.
Por conseguinte, o Contencioso Administrativo não é uma “invenção liberal” derivada do princípio da separação de poderes, inserindo-se, pelo contrário, na linha de continuidade entre o Ancien Régime e o Estado Liberal. Aliás, o próprio Contencioso Administrativo do Estado Liberal detinha elementos inspirados nas instituições do Ancien Régime, como é o caso do Conselho de Estado (antigo Conselho do Rei), que tinha sido criado com o objectivo de facilitar a concentração e a centralização do poder real mediante o afastamento, pela via de recurso, das resistências dos tribunais à actuação das autoridades administrativas e, bem assim, as técnicas e os instrumentos jurídicos do modelo anterior permaneceram após a Revolução, tendo sido aperfeiçoados.



BIBLIOGRAFIA:
PEREIRA DA SILVA, V., Em Busca do Acto Administrativo Perdido, Ed. Almedina, 2003
PEREIRA DA SILVA, V., O Contencioso Administrativo no Divã da Psicanálise – Ensaio Sobre as Acções no Novo Processo Administrativo, Ed. Almedina, 2009



João Valbom Baptista - 15930