quarta-feira, 16 de dezembro de 2009

A Intimação para Protecção de Direitos, Liberdades e Garantias - Alcance face ao art. 20º/5 da CRP e Jurisprudência

Referido como uma das principais novidades da reforma do contencioso administrativo, o meio processual de intimação para protecção de direitos, liberdades e garantias está previsto nos artigos 109° a 111º do CPTA.
Este meio processual urgente (v. 36º CPTA) constitui-se por oposição aos processos principais não-urgentes (na forma da acção administrativa comum ou especial), por um lado, e aos processos cautelares (que existem sempre na dependência destes), por outro.
A intimação urgente do 109º CPTA corresponde especificamente à concretização da garantia constitucional prevista no art. 20°/5 da CRP. Atendendo ao texto da Constituição, confirma-se que o que está em causa não é a referência a um outro tipo de protecção cautelar, mas sim a efectivação da existência de processos céleres e prioritários, para os casos em que se torne necessário obter protecção eficaz e em tempo útil contra eventuais ameaças ou atentados aos direitos, liberdades e garantias dos particulares.
Portanto, na linha da evolução constitucional e da evolução do próprio contencioso adminsitrativo, o que o legislador administrativo consagrou no 109º CPTA foi um meio reforçado, para sublinhar a posição preferencial do cidadão como sujeito de direitos e liberdades fundamentais. Confirma-se assim a centralidade dos direitos subjectivos do particular no seio do novo regime do contencioso administrativo.
A admissibilidade do pedido urgente de intimação para a protecção de direitos, liberdades e garantias depende sobretudo de dois pressupostos:
- que seja indispensável a obtenção urgente de uma decisão de mérito sobre a pretensão do particular, em defesa de um direito, liberdade ou garantia.
- que se revele impossível ou insuficiente para a tutela da situação concreta o decretamento provisório de uma providência cautelar, no âmbito de uma acção administrativa não-urgente, seja comum ou especial.
Portanto, este meio processual destina-se às situações em que seja necessário obter uma protecção rápida e definitiva, face a qualquer tipo de ameaças, restrições ou violações provenientes de actuação ou omissão da Administração Pública ou de privados no exercício da função administrativa. Em prol da celeridade do processo, o legislador assume o risco e o prejuízo que a mesma representa para a obtenção de prova e para a ponderação global da questão. Daí dar-se preferência à aplicação das providências cautelares (essas sim, provisórias e acessórias), sempre que tal seja possível e adequado.

Surge então a questão: aparentemente o legislador administrativo foi mais longe do que o previsto no art. 20º/5 da CRP, onde o que se visa proteger são os direitos, liberdades e garantias pessoais. Será que os direitos fundamentais equiparados ou de natureza análoga não estão previstos no 109º CPTA e, consequentemente, não seria possível instaurar processo urgente de intimação para protecção dos mesmos?

Na opinião dos Professores Vasco Pereira da Silva e Mário Aroso de Almeida não devemos fazer tal interpretação restritiva do preceito constitucional, pois o 109º CPTA pode ir legitimamente para além do mesmo. O essencial é que, de facto, não fique aquém do previsto na CRP. Assim, os processos urgentes de intimação em questão abrangem todos os direitos, liberdades e garantias, incluindo os de natureza análoga e não apenas os pessoais.

Não devemos privilegiar visões restritivas, segundo as quais haveria direitos fundamentais de 1ª e de 2ª categoria. Para superar esta distinção já existe o art. 17º da CRP. Devemos sim sublinhar que em cada caso em que ocorra uma violação de um direito dito programático ou económico, social e cultural, o que a Constituição salvaguarda enquanto manifestação de legalidade objectiva são os direitos subjectivos do particular, que sente a violação na sua esfera privada. Deste ponto de vista, todos os direitos fundamentais constitucionalmente consagrados merecem o mesmo tratamento e a protecção conferida pelo mecanismo do CPTA.

Foi realizada uma breve pesquisa para averiguar se existe jurisprudência que corrobore tal entendimento. Entre outros foram detectados os seguintes Acórdãos do Supremo Tribunal Administrativo:

- Acórdão de 21-09-2006 (Processo 0885/06): o STA considerou apropriado o meio previsto no 109º CPTA, relativamente a um litígio suscitado por um Notário, no seguimento de um concurso público. Estava em causa o direito a exercer a profissão de Notário e, conforme o alegado pelo requerente, a decisão deveria ser em tempo útil e de mérito, o que justificava o meio processual em questão. Assim, o recurso do particular foi admitido. Sobre o mesmo processo, o Acórdão de 06-12-2006 veio negar provimento ao particular, indeferindo o pedido de intimação do Ministério da Justiça para a abertura urgente de concurso para a concessão de licenças de instalações de cartórios notariais já que “o requerente, que invoca, como fundamento do pedido, a necessidade assegurar o exercício do direito à respectiva profissão de notário, continua a exercê-la, nos termos daquele Estatuto, no Cartório de que era titular e até à tomada de posse do notário que aí deva iniciar funções, na sequência da realização de um novo concurso”. Contudo, a sentença de mérito foi obtida pela via processual em análise.

- Acórdão de 16-01-2008 (processo 0909/07), entre muitos outros sobre a mesma temática (acesso e exercício do direito à educação e princípio da igualdade), nomeadamente: Acórdãos do STA de 20/12/2007 (Proc. 775/07), 13/09/2007 (Proc. 566/07) e 25/09/2007 (Proc. 598/07). Confirma-se neste Acórdão que o meio processual é adequado para discutir matérias referentes ao concurso de acesso ao ensino superior, que exigem a obtenção de decisões de mérito urgentes. O meio oferece suficientes garantias dos direitos de defesa da Administração, nomeadamente do direito ao contraditório. Assim, por via do processo urgente de intimação, foram considerados inconstitucionais um Decreto-Lei e um Despacho (ambos de 2006) que permitiam “que os candidatos que realizaram a prova de Química na 1ª fase dos exames nacionais do ensino secundário pudessem melhorar a nota obtida, realizando uma nova prova, sem que aquelas se mostrem inquinadas por erro técnico ou irregularidade, ficando excluídos dessa possibilidade de melhoria de nota os alunos que optaram por realizar a prova na 2ª fase dos exames nacionais”.

Há todavia várias sentenças que recusam a aplicação da intimação urgente, mas sempre sustentadas no argumento de que os meios não-urgentes, combinados com a protecção cautelar, seriam adequados para a tutela da situação (e não alegando a não-aplicação do processo aos direitos invocados pelo particular). Assim, p. ex.:

- Acórdão do STA de 07-10-2009 (processo 0884/09), em que se concluiu que “não pode proferir-se intimação para protecção de direitos liberdades e garantias quando o requerente pretende ver satisfeita uma pretensão de reclassificação profissional, previamente requerida à Administração e que não foi decidida favoravelmente no prazo previsto na lei para decisão, pois, numa situação deste tipo, é suficiente para assegurar adequada tutela judicial para essa pretensão, a acção de condenação à prática de acto devido, complementada com uma providência cautelar, se necessário com decretamento provisório”. A este propósito os Tribunais aplicam o entendimento do Prof. Mário Aroso de Almeida segundo o qual deve haver lugar à “convolação oficiosa do processo de intimação num processo cautelar”, para salvaguardar a posição do particular e aplicar o direito à situação concreta, sobrepondo assim o princípio da tutela jurisdicional efectiva (art. 2º CPTA) à incorrecção formal do pedido original.

Os poucos exemplos acima citados comprovam que a jurisprudência encara os direitos económicos, sociais e culturais como direitos fundamentais de natureza análoga (conforme referido no 17º CRP), conferindo-lhes assim toda a protecção do regime constitucional específico dos direitos, liberdades e garantias. Naturalmente, no âmbito deste regime devemos incluir a possibilidade de recorrer à intimação prevista no 109º CPTA, sempre que os requisitos de urgência de obtenção de tutela de mérito se verifiquem.

Como exemplo desta interpretação poderemos apontar o direito ao ambiente, entendido por alguns como um direito fundamental "menor". Contudo, em vários Acórdãos (de 22-01-2004, 25-02-1999, 08-06-1999, 24-10-2002, etc.) o STA confirma que este direito deve ser considerado como direito fundamental de natureza análoga, pelo que, no seguimento das razões acima expostas, devemos considerar que o meio processual urgente do 109º CPTA seria aplicável em caso de violação deste direito, que necessitasse de tutela imediata e definitiva.
Bibliografia:
- Mário Aroso de Almeida, "O novo regime do processo nos Tribunais Administrativos", 2005.
- Vasco Pereira da Silva , "O contencioso admisnistrativo no divã da psicanálise", 2009.
- Jurisprudência do STA.
Gueorgui Ivanov (aluno nº 16406)