domingo, 25 de outubro de 2009

Una Lex Una Jurisdisctio Vs. Contencioso Administrativo

O Contencioso Administrativo foi inicialmente, e como todos por esta altura do nosso curso sabemos, adoptado em França no século XVIII, estamos no âmbito da Revolução Francesa de 1789, que conduziu o contencioso administrativo até nós, tal como hoje o conhecemos. De salientar que também a Declaração Universal dos Direitos do Homem, contemporânea da Revolução Francesa, influenciada pela ideologia de Rosseau nos diz que “um povo livre obedece, mas não serve; tem chefes mas não donos (...) ”, definindo-se assim o primado do princípio da legalidade. Este princípio conduz a DUDH de 1789 a proclamar que a sociedade tem o direito de exigir explicações aos agentes públicos no domínio da sua administração.

No auge de todas estas influências históricas e ideológicas, surge então, em França na Assembleia Constituinte de 1790, o Contencioso Administrativo: “ As funções judiciais são e permanecerão separadas das funções administrativas. Os juízes não poderão sob pena de prevaricação, interferir, de qualquer maneira que seja nas operações dos órgãos administrativos nem chamar à sua presença os admnistradores, em razão das suas funções”.

Assim nos países, como Portugal, onde foi adoptado o sistema francês ou contencioso administrativo, existe uma jurisdição especial do contencioso administrativo constituída por tribunais de índole administrativa Isto conduz-nos a uma dualidade de jurisdição: jurisdição administrativa formada pelos tribunais de natureza administrativa; e a jurisdição comum, constituída pelos órgãos do poder judiciário, onde se esgrimem os demais litígios.
O ETAF, no seu artº 4º define em concreto o sentido da jusridição administrativa e a forma como ela se processa entre nós:
Artigo 4.
Âmbito da jurisdição
1 - Compete aos tribunais da jurisdição administrativa e fiscal a apreciação de litígios que tenham nomeadamente por objecto:
a) Tutela de direitos fundamentais, bem como dos direitos e interesses legalmente protegidos dos particulares directamente fundados em normas de direito administrativo ou fiscal ou decorrentes de actos jurídicos praticados ao abrigo de disposições de direito administrativo ou fiscal;
b) Fiscalização da legalidade das normas e demais actos jurídicos emanados por pessoas colectivas de direito público ao abrigo de disposições de direito administrativo ou fiscal, bem como a verificação da invalidade de quaisquer contratos que directamente resulte da invalidade do acto administrativo no qual se fundou a respectiva celebração;
c) Fiscalização da legalidade de actos materialmente administrativos praticados por quaisquer órgãos do Estado ou das Regiões Autónomas, ainda que não pertençam à Administração Pública;
d) Fiscalização da legalidade das normas e demais actos jurídicos praticados por sujeitos privados, designadamente concessionários, no exercício de poderes administrativos;
e) Questões relativas à validade de actos pré-contratuais e à interpretação, validade e execução de contratos a respeito dos quais haja lei específica que os submeta, ou que admita que sejam submetidos,
a um procedimento pré-contratual regulado por normas de direito público;
f) Questões relativas à interpretação, validade e execução de contratos de objecto passível de acto administrativo, de contratos especificamente a respeito dos quais existam normas de direito público que regulem aspectos específicos do respectivo regime substantivo, ou de contratos em que pelo menos uma das partes seja uma entidade pública ou um concessionário que actue no âmbito da concessão e que as partes tenham expressamente submetido a um regime substantivo de direito público;
g) Questões em que, nos termos da lei, haja lugar a responsabilidade civil extracontratual das pessoas colectivas de direito público, incluindo a resultante do exercício da função jurisdicional e da função legislativa;
h) Responsabilidade civil extracontratual dos titulares de órgãos, funcionários, agentes e demais servidores públicos;
i) Responsabilidade civil extracontratual dos sujeitos privados aos quais seja aplicável o regime específico da responsabilidade do Estado e demais pessoas colectivas de direito público;
j) Relações jurídicas entre pessoas colectivas de direito público ou entre órgãos públicos, no âmbito dos interesses que lhes cumpre prosseguir;
l) Promover a prevenção, cessação e reparação de violações a valores e bens constitucionalmente protegidos, em matéria de saúde pública, ambiente, urbanismo, ordenamento do território, qualidade de vida, património cultural e bens do Estado, quando cometidas por entidades públicas, e desde que não constituam ilícito penal ou contra-ordenacional;
m) Contencioso eleitoral relativo a órgãos de pessoas colectivas de direito público para que não seja competente outro tribunal;
n) Execução das sentenças proferidas pela jurisdição administrativa e fiscal.
2 - Está nomeadamente excluída do âmbito da jurisdição administrativa e fiscal a apreciação de litígios que tenham por objecto a impugnação de:
a) Actos praticados no exercício da função política e legislativa;
b) Decisões jurisdicionais proferidas por tribunais não integrados na jurisdição administrativa e fiscal;
c) Actos relativos ao inquérito e à instrução criminais, ao exercício da acção penal e à execução das respectivas decisões.
3 - Ficam igualmente excluídas do âmbito da jurisdição administrativa e fiscal:
a) A apreciação das acções de responsabilidade por erro judiciário cometido por tribunais pertencentes a outras ordens de jurisdição, bem como das correspondentes acções de regresso;
b) A fiscalização dos actos materialmente administrativos praticados pelo Presidente do Supremo Tribunal de Justiça;
c) A fiscalização dos actos materialmente administrativos praticados pelo Conselho Superior da Magistratura e pelo seu presidente;
A apreciação de litígios emergentes de contratos individuais de trabalho, ainda que uma das partes seja uma pessoa colectiva de direito público, com excepção dos litígios emergentes de contratos de trabalho em funções públicas.


Contudo, este sistema não foi adoptado por todos os países, nem mesmo nos países de tradição romano-germânica, uma vez que mesmo aqui se diferenciam os que adoptaram o sistema francês e os que adoptaram o sistema de jurisdição una, ou única. Este sistema evolui a partir do sistema utilizado pela Corte Inglesa que cumulava o poder de administrar e julgar na Coroa. O monarca não submetia os seus actos a qualquer espécie de controle o que gerava insegurança entre os súbditos. Assim em 1701 com o Act of Settlement, os juízes são desvinculados do poder real, mas conservando competência para questões comuns e administrativas. Instituía-se assim, o poder judicial independente do Legislativo e do Rei, agora com jurisdição única e plena para conhecer e julgar todas as questões administrativas em parelelo e igualdade com os demais litígios privados Espelho deste último temos o Brasil, país que apesar da influência histórica de Portugal, adoptou o sistema inglês. Assim, o sistema de jurisdição única, também denominado sistema de controle judicial, é aquele em que todos os litígios, independentemente de quem figure como parte, são todos dirimidos judicialmente pela justiça comum, ou seja pelos tribunais do poder judiciário. Deste modo não podemos falar em contencioso administrativo no Brasil da forma como ele é tratado nos países que adoptaram o sistema francês.

Não existe, desta forma, possibilidade para se falar em jurisdição administrativa nos moldes em que é tratado no nosso artº 4º ETAF, até porque o sistema de controle dos actos da Administração no âmbito do poder executivo não possibilita encerrar o litígio em definitivo, o mesmo será dizer não se dá o caso julgado.
O sistema brasileiro funda-se no princípio Una lex, una jurisdictio, não havendo conflito entre o Judiciário e o Administrativo uma vez que não são entendidos como ordens distintas de jurisdição, porque a Administração não julga, só o Poder Judiciário julga, podendo contudo ocorrer conflitos de atribuição entre as duas em matéria administrativa.
A questão no Brasil tem sido por diversas vezes estudada e até mesmo alvo de algumas alterações legislativas, se bem que a partir da instauração da República o Brasil tenha adoptado o sistema administrativo de jurisdição única, realizado pela justiça comum para não mais mudar. Todas as constituições do sec. XX: 1934, 1937, 1946, 1967 e 1969 não admitiram a adopção de um contencioso administrativo, apenas em 1977 ( EC nº 7/77) foi prevista a eventual criação do Contencioso Administrativo, mas a Carta Magna de 1988 afastou de todo essa possibilidade, seguindo o Brasil a sua tradição da Una Lex Una Jurisdictio.
Alguns aspectos podemos ainda referir quanto aos dois sistemas em análise, já que a questão não é pacífica, porque quanto ao sistema administrativo da jurisdição única, os seus defensores argumentam o princípio da igualdade, já que tdos os cidadãos se sujeitam a uma só apreciação de conflitos. Por outro lado os defensores do sistema francês apostam na especialização, para além de se defender que a função jurisdicional deve ser exercida por órgão que pelas suas características se demonstre isento na análise das questões controvertidas que lhe sejam submetidas.

São apontadas desvantagens ao sistema do contencioso administrativo, porque se instituem dois critérios de justiça: um da jurisdição administrativa, outro da jurisdição comum, para além de que num Estado de Direito tanto os indivíduos como a Administração devem ver garantidos pela mesma ideia de Justiça, os seus direitos fundamentais, sem previlégios típicos de uma jurisdição especial.
Importante referir que apesar de o título nos parecer indicar uma verdadeira contraposição nos sistemas em apreciação, a salvaguarda dos interesses e direitos fundamentais dos administrados é objectivo comum, as formas como esse objectivo se concretiza, é que, como referido, se processa de forma diferente.

Rosa Pitacas