quarta-feira, 4 de novembro de 2009

O Contencioso Administrativo na experiência Alemã

A história do Contencioso Alemão é uma história "traumática", desde logo pelo regime nacional-socialista (de 1933 a 1945), época de profunda supressão de direitos dos particulares e de uma guerra que devastou o país. Depois, é também marcado pela divisão da Alemanha entre o bloco ocidental (República Federal Alemã) e o bloco oriental (República Democrática Alemã).
Estas situações deixaram marcas profundas na Alemanha, ultrapassando as fronteiras do "mundo" do Contencioso Administrativo.

1. Do século XIX até à Segunda Guerra Mundial

No início do século XIX, a Alemanha sofreu forte influência do sistema francês de tutela dos particulares perante o Estado, o Príncipio da Separação rígida de Poderes (também conhecida como interpretação francesa) era a ideologia dominante. Tendo como consequência, a subtração de competência dos Tribunais comuns em matéria administrativa e a criação de esquemas de auto-controlo da administração, sempre sobre o prisma da legalidade.
Com o nascimento da concepção de Estado de Direito, que se fica a dever a von Mohl, procura-se a protecção do particular perante o Estado. A sequência lógica, desta ideia, seria a criação de um modelo de Contencioso centrado nos direitos subjectivos dos particulares, através da intervenção de um verdadeiro juiz. Tal chegou a ser proclamado durante a Revolução de 1848 (Lei sobre os Direitos Fundamentais do Povo Alemão), sendo que este movimento revolucionário saiu frustrado.
Mas a ideia de que só um juiz, pela sua imparcialidade e independência, pode garantir a legalidade prevaleceu. Assim em 1875 entra em vigor uma lei sobre tribunais administrativos.
Esta lei determinou a adopção de um modelo de Contencioso objectivo, a delimitação expressa do âmbito de jurisdição (Príncipio da Enumeração) e a existência de uma ordem jurisdicional autónoma, com uma distribuição de Tribunais por três níveis hierárquicos. O direito do particular tem somente uma protecção reflexa, o que se busca é a defesa da legalidade.
É de assinalar que esta questão provocou um aceso e interessante debate doutrinário, com a intervenção de entre outros Gneist (concepção objectivista) e von Stein (subjectivista).
O facto de a Alemanha ser um Estado Federal permitiu a existência de dois modelos: o do norte (ou Prussiano) mais centrado no interesse público e na legalidade e o do sul em que o direito do particular assume maior relevância.
Após a Constitução de Weimar, a doutrina inclinou-se a favor da tutela subjectiva, ainda que, sem rejeitar também uma tutela de legalidade simultânea. Todavia não houve tempo para que estas opiniões tivessem um efeito no legislador, já que surge o nacional-socialismo.
Como sabemos, estamos perante uma corrente política que repele o Estado de Direito, a separação de poderes, direitos fundamentais e o liberalismo. Os Tribunais Administrativos viram-se assim altamente limitados, o juiz tem que seguir uma certa doutrina de Estado. Tendo mesmo sido nomeado um lider das SS (Schutzstaffel) para juiz de um Tribunal Administrativo, o que é sintomático do que neste período se viveu.


2. Do pós-guerra aos nossos dias


Neste período, assistiu-se a um processo de profunda reforma do Contencioso alemão, sempre com uma ideia de "unificação" como pano de fundo.
Em todo este processo, existem duas leis que se revelam fundamentais: a Verwaltungsgerichtsordnung (Vwgo) e Bundesverwaltungsgericht (BverwG).
A Vwgo, de 1960, é a lei dos tribunais administrativos, correspondente ao nosso código de processo. A Bverwg criou o supremo tribunal federal para matérias administrativas, o Tribunal Administrativo Federal, em 1952.
O artigo 19º/4 da Lei Constitucional garante a tutela jurisdicional dos cidadãos, perante situações violadoras dos seus direitos subjectivos através de actos de poder. Isto é a consagração ao nível Constitucional de um Contencioso marcadamente subjectivista. Vamos então ver como o legislador concebeu esta tutela, o mesmo é dizer, que meios processuais são concedidos aos particulares.

2.1 Os meios processuais

Até aos anos 50, toda a actividade jurisdicional era baseada na figura do acto administrativo, definitivo e executório. Como diz Sérvulo Correia: "O recurso contencioso de anulação revelou-se durante muitas décadas como fórmula inultrapassável de conjugar a submissão da actividade administrativa ao controlo de tribunais com o reconhecimento da existência de poderes separados".
Todavia, este meio de protecção começou a revelar-se ineficaz por duas razões: a primeira prende-se com as omissões da Administração, através de uma conduta omissiva, a Administração dificulta o controlo pelo tribunal, ele vai avaliar um acto (que era tudo o que ele podia fazer) que não existe, daí o nascimento da figura do indeferimento tácito; a segunda advém da anulação de um acto negativo, que no plano dos efeitos se revela uma autêntica nulidade (em sentido não juridico), é uma declaração de Direito que em nada beneficia o particular.
A tutela dos direitos dos particulares passou então a ser feita com recurso a 5 acções: a acção de anulação de acto administrativo (Anfechtungsklage), acção de condenação da Administração na práctica de acto administrativo recusado ou omitido (Verpflichtungsklage), a acção de existência ou inexistência de uma relação jurídica administrativa ou da nulidade de um acto administrativo (Feststellungsklage), a acção de condenação da Administração à realização de uma conduta que não seja acto administrativo e por último a fiscalização da legalidade dos regulamentos, Normenkontrollage.

Anfechtungsklage: o pedido é a anulação de acto administrativo lesivo de direitos de particulares, a sentença terá efeito constitutivo (determina uma alteração à ordem jurídica), sendo dotada de força obrigatória geral, com efeitos retroactivos. A administração não poderá emitir novo acto adminstrativo de conteúdo idêntico ao acto anulado, o que o Professor Sérvulo Correia diz serem "efeitos declarativos".
Esta modalidade de acção pode ser utilizada para a declaração de nulidade, desde que não se cumulem com este pedido (a declaração de nulidade), pedidos condenatórios (nesse caso o meio correcto é a Feststellungsklage). Apesar de já não "deter o monopólio", este tipo de acção continua a ser um importante meio de tutela.

Verpflichtungsklage: é a acção de condenação da Administração à prática de acto administrativo. É um meio importantissimo para reacção dos particulares perante a administração prestadora. De acordo com o nº1 do artigo 42º da Vwgo, esta acção pode ser intentada tanto perante uma omissão da Administração, como perante um acto de recusa de determinada vantagem. Havendo um acto expresso de recusa, o tribunal condena a Administração à revogação dessa recusa e à emissão de acto positivo (sendo que este último efeito é o que se assume mais relevante). Se o acto a practicar tiver por objecto um poder vinculado, o tribunal condenará a Administração à pratica de um acto com certo e determinado conteúdo. Se estivermos perante um acto a praticar à luz de um poder discricionário, o tribunal condenará a administração a emitir o acto de acordo com certas "directrizes jurídicas", mas não poderá determinar o conteúdo do dito acto (força do Princípio da Separação dos Poderes).

Feststellungsklage: através desta acção é possivel obter uma declaração de existência ou inexistência de uma relação jurídica administrativa. É um meio subsidiário, apenas quando o particular não pode recorrer à acção de anulação ou de condenação pode utilizar este expediente. O artigo 43º da Vwgo, faz depender a admissibilidade deste meio, da existência de um interesse protegido pela Ordem Jurídica.


Acção de condenação da Administração a prestação diversa de acto administrativo: é uma figura (segundo o Professor Sérvulo Correia) de pouca utilização. Também ela é subsidiária, neste caso da acção de condenação à practica de acto, ou seja quando não seja qualificável o acto no qual se pretende que a administração seja condenada como administrativo, deve usar-se este tipo de acção. Este tipo de acção não tem previsão em lei ordinária, "nasce" com base na Lei Fundamental Alemã, artigo 19º/4. Tem ainda a especificidade de permitir que a administração demande particulares através deste meio.

Normenkontrollage: é uma acção declarativa (regulada no artigo 47º da Vwgo) que aprecia a legalidade de normas regulamentares. Basea-se na estrita apreciação da conformidade legal do regulamento, pode ser proposta por um serviço da administração pública e tem força obrigatória geral. Estas caracteristicas levam a que os autores digam que é uma acção de cariz objectivo.


2.2 Organização dos Tribunais Administrativos

A competência para solução de conflitos provenientes da actividade Administrativa divide-se em Tribunais Gerais e Especiais, sendo que existem Tribunais especiais para os litígios de Segurança Social (Sozialgerichtsbarkeit) e Fiscais (Finanzgerichtsbarkeit). Estes têm uma organização própria, com três níveis hierarquicos de jurisdição.
Dentro da organização dos Tribunais Administrativos Gerais existem Tribunais de competência especializada relativos a conflitos de Poder Disciplinar, Forças Armadas, Profissões Liberais. O recurso das decisões destes Tribunais de competência Especializada, são competência da 2ª instância Administrativa, o que demonstra que estes se encontram de facto inseridos nesta organização.
Os Tribunais Administrativos dividem-se por três niveis hierárquicos: Tribunais dos "Lander" (ou dos Estados federados), Tribunais do Land (Verwaltungsgerichtshof ou Oberverwaltungsgericht), Tribunal Administrativo Federal (Bundsverwaltungsgericht).
Os Tribunais dos Lander são competentes em 1ª instância, excepto na impugnação de regulamentos, ou matérias que envolvam centrais nucleares, aeroportos (alargamento ou instalação destes) e outras situações do género. Nestes casos será competente o Tribunal do Land, bem como para apreciar os recursos da primeira instância. O Tribunal Administrativo Federal avalia os recursos da segunda instância, mas só mediante a avaliação de certos requisitos, por exemplo necessidade de uniformização de jurisprudência.

Quanto à composição dos Tribunais a regra geral é o Principio da Colegialidade. Com a interessante componente de ser comum a participação de juizes honorários, que revela assim uma enorme participação do cidadão na justiça.

3. Conclusão

O Contencioso Alemão é assim um modelo subjectivista, que se fica a dever à traumática experiência do nacional-socialismo.
É provávelmente, dos sistemas conhecidos, aquele que permite maior fiscalização judicial à discricionariedade administrativa. Há um sentimento de desconfiança perante a administração.
Este modelo, teve uma forte influência sobre o legislador português na reforma do Contencioso de 2003, sendo que tal inspiração se revela muito notória nos tipos de acção.
Tem especificidades próprias e problemas, como por exemplo a suspensão automática da eficácia do acto impugnado, que tem vindo a ser objecto de grandes alterações, em grande parte por influência comunitária.