Aproveitando esta oportunidade do divã da psicanálise, confesso que, no 2º ano do curso, quando estudei Direito Administrativo tive algumas dúvidas existenciais.
Nomeadamente acerca de onde entrava a separação de poderes de Montesquieu[i] já que “julgar ainda é administrar”.
Foi de difícil compreensão o facto de à actividade Administrativa caber a prossecução do interesse público e ao mesmo tempo ser essa mesma administração a auto – controlar a conformidade da sua actuação com o Princípio da Legalidade e caber-lhe, em exclusivo, o controlo do mérito: “A Administração pode, em princípio, exercer sobre os seus próprios actos um controlo de legalidade e um controlo de mérito”.[ii]
Volvidos dois anos fica esclarecido que tal não passa, afinal, de resquícios de uma infância difícil.
“A actual situação do Contencioso Administrativo pode ser caracterizada […] como a “fase do crisma ou da confirmação”, já que corresponde, por um lado, à reafirmação da sua natureza plenamente jurisdicionalizada, em que o juiz não apenas goza de independência mas também de plenos poderes em face da Administração, por outro lado, à consagração da sua dimensão subjectiva, destinada à protecção integral e efectiva dos direitos dos particulares.”[iii]
A Reforma tem como objectivo, entre outros, alcançar um modelo de justiça administrativa mais conforme com o modelo constitucional, ultrapassando a inibição em reconhecer aos tribunais administrativos amplos poderes de condenação da Administração.
A jurisdição administrativa deixa de ser uma jurisdição de poderes limitados, a cujos juízes não era reconhecida a possibilidade de emitir todo o tipo de pronúncias.
A Administração deixa de só poder ser condenada ao pagamento de indemnizações, no âmbito das acções de responsabilidade civil, para passar a poder sê-lo sempre que esteja constituída em deveres jurídicos. A condenação tanto pode dizer respeito ao dever de praticar actos jurídicos, como de realizar prestações materiais.
Há um considerável alargamento dos poderes jurisdicionais de cognição e de condenação da Administração pelos tribunais, o que assume relevo no âmbito da Acção Administrativa Especial[iv].
Em relação aos poderes cognitivos, o tribunal dispõe do poder - dever de se pronunciar sobre todas as concretas causas de invalidade de que enferma o acto impugnado mesmo que não tenham sido invocadas pelo autor, artigo 95º nº.2 do CPTA.
Quanto aos poderes de condenação, face a um pedido dirigido à prática do acto administrativo devido é permitido ao tribunal que condene a Administração não só na prática desse acto como também na adopção dos demais comportamentos mesmo que estes não consubstanciem actos administrativos. O tribunal pode pronunciar-se sobre a pretensão material do autor podendo determinar o conteúdo do acto a praticar pela Administração, artigo 71º do CPTA.
A condenação à prática de actos administrativos tanto se pode concretizar numa condenação no dever de decidir, no exercício de poderes discricionários como na condenação à prática de um acto com um determinado conteúdo como ainda na determinação das vinculações a observar na prática do acto administrativo.
Mesmo quando não esteja em causa a emissão de um acto de conteúdo vinculado e a emissão do acto pretendido envolva a formulação de valorações próprias do exercício da função administrativa, o tribunal deve determinar o conteúdo do acto a praticar sempre que a apreciação do caso concreto permita identificar apenas uma solução como legalmente possível.
Nos restantes casos, o tribunal deve pelo menos explicitar as vinculações a observar pela Administração na emissão do acto devido.[v]
Assim, poderá dizer-se que o artigo 71.º "é a pedra de toque do novo instituto da condenação à prática de actos administrativos".[vii]
A título de curiosidade, imagine-se que a Administração passa a pagar custas, artigo 189º nº 1 do CPTA. Até aqui a Administração esteve isenta de custas, o que era apontado como contributo para a tendência de recorrer sempre que perdia em 1ª Instância. Mesmo quando era manifesta a falta de razão.
Outra novidade é que a Administração passa a poder ser condenada por litigância de má fé artigo 6º do CPTA.[vi]
[i] O Espírito das Leis
1748
[ii] Curso de Direito Administrativo Vol. II
Diogo Freitas do Amaral
Edição de 2001, Página 98
[iii] O Contencioso Administrativo no Divã da Psicanálise
Ensaio sobre as acções no Novo Processo Administrativo
Vasco Pereira da Silva
2ª Edição, Página 85
[iv] Linhas Gerais da Reforma do Contencioso Administrativo http://rca.meticube.com/_RCA/Documents/LINHASGERAIS.pdf
[v] Intervenção proferida pelo Prof. Doutor Mário Aroso de Almeida*
O Novo Regime do Contencioso Administrativo
[vi] Intervenção oral proferida pelo Dr. Bernardo Ayala
Colóquio sobre a Reforma do Contencioso Administrativo
4 de Dezembro de 2003, Lisboa
[vii] M. Aroso de Almeida / C. Cadilha
Helena Guerra
Subturma 3, nº 16629