quinta-feira, 10 de dezembro de 2009

comentário ao tema 1

Contencioso Administrativo

(Herança do Antigo Regime/ Princípio da Separação de Poderes)

No que concerne, à evolução histórica do Contencioso Administrativo, torna-se essencial uma análise de Direito Comparado, comparativamente ao sistema jurídico nacional, no sentido, de configurar uma resposta, quanto ao facto do Contencioso Administrativo ser hoje uma herança do antigo regime (Revolução Francesa, 1789), ou algo cuja génese, teve somente relacionado com a questão do Princípio da Separação de Poderes.

Relativamente ao sistema francês, escusado será dizer, que a revolução francesa, de 1798, é o berço do Contencioso Administrativo, sendo este, considerado pela maioria da Doutrina, como uns dos seus principais “frutos históricos”. O Antigo Regime conhecera, em França, alguns órgãos que já exerciam jurisdição sobre matérias administrativas (águas e florestas), contudo, este facto não impedia que os tribunais comuns de decidir muitos litígios emergentes da actividade administrativa; tudo isto suscitava complexos problemas, dado que, graças à sua composição e ás suas competências, os tribunais eram em boa medida órgãos de defesa de privilégios caducos e de oposição à criação de um aparelho administrativo estadual, além de que, em muitos casos, o mesmo órgão dispunha simultaneamente de competências jurisdicionais e de competências administrativas.

A reconstrução da sociedade, à luz de novos ideias, através da revolução, requeria a subordinação ao Governo de uma Administração una e concentrada, liberta de ingerências alheias, reforçando um dos princípios chave, que liderou os movimentos culturais e jurídicos do século XVIII (iluminismo), o Princípio da Separação de Poderes; os juízes não podiam perturbar de qualquer maneira as operações dos corpos administrativos, nem convocar perante si os agentes da Administração por motivo atinente às funções destes.

Face às relações entre Administração e administrado, tendo em atenção ao Princípio da Legalidade, constitui-se a figura do administrador – juiz: a fiscalização da legalidade da conduta administrativa teria de caber aos topos das hierarquias administrativas, isto é, ao Rei, aos directórios de distrito e aos directórios de departamento. A ideia da separação de poderes não era atraiçoada por tal solução (julgar a Administração é ainda administrar). Tratava-se antes de organizar a separação de poderes estabelecendo uma derrogação à regra da separação de poderes e autorizando os órgãos administrativos a exercer uma actividade materialmente jurisdicional. Em França, os tribunais administrativos surgiram através de um processo gradual de jurisdicionalização do administrador -juiz. O primeiro consistiu na criação do Conseil d´Etat, em 1799, com competências puramente consultivas, cabendo-lhe pronunciar-se sobre questões contenciosas cuja decisão se encontrava previamente confiada aos ministros. Das decisões dos ministros (administradores-juizes em última instância após a queda da Monarquia), passava pois a caber recurso para o primeiro Cônsul, que decidia sob consulta do Conselho de Estado. Na realidade, principiava assim, de forma discreta, um processo de separação material entre a função administrativa e a função jurisdicional e de submissão da Administração a um juiz. Em 1806 criou-se, no Conselho de Estado uma Comissão de Contencioso que recebe as petições, procede à sua instrução e apresenta relatórios à Assembleia Plenária, segundo regras processuais definidas; por volta de 1849, durante a Segunda República, foi aprovada uma lei em cujos termos o Conselho de Estado estatui em última instância sobre o contencioso administrativo, abandonando-se a jurisdição reservada e o órgão recebia um poder jurisdicional próprio. Após alguma evolução posterior, a mesma lei de 31 de Dezembro de 1987 que criou as Cours administratives d´ appel estendeu aos juízes destas o regime instituído por uma outra lei de 6 de Janeiro de 1986, fixando regras que garantem a independência dos juízes dos tribunais administrativos. Este é, com efeito, problema que se põe com crescida acuidade num sistema em que os tribunais que exercem a jurisdição administrativa permanecem organicamente ancorados na Administração Pública, relativamente à qual também exercem uma função consultiva, e são preenchidos por pessoas provindas na sua maioria da École nationale d´administration. As normas legais de 1986-1987 a que aludi conferem aos membros dos tribunais administrativos a qualidade de magistrados com estatuto de inamovibilidade e entregam a gestão das respectivas carreiras e disciplina a um Conselho Superior dos Tribunais Administrativos, por outro lado, a gestão administrativa destes tribunais foi retirada ao Ministro do Interior e confiada ao Secretário Geral do Conselho de Estado.

No sistema actual, paradigma de sistema de dualidade de jurisdições, o Contencioso Administrativo francês mantém-se ancorado no princípio da proibição aos tribunais de decidir sobre a legalidade das decisões administrativas. Embora reconhecido como sujeito a excepções, está hoje qualificado pelo Conselho Constitucional como princípio fundamental reconhecido pelas leis da República. No entanto, a especialização da jurisdição administrativa não se explica, ao contrário, do que hoje sucede em Portugal ou na Alemanha, por uma estruturação compósita do poder judicial. Em França, o perfil orgânico da ordem jurisdicional administrativa continua a corresponder ao aforismo oitocentista de que “julgar a Administração é ainda administrar”. O Conselho de Estado, os tribunais administrativos e as cours administratives d´appeal permanecem organicamente ligados ao executivo e não ao poder judiciário. Esta solução não se apresenta como um mero resquício do passado, antes sendo assumida como uma concepção especificamente francesa da justiça administrativa, assente na existência de um juiz não apenas especializado em Direito Administrativo mas possuindo o espírito de administrador, um juiz consciente de que as suas decisões devem ser um complemento da acção administrativa. Esta interdependência entre administração activa e administração contenciosa traduz-se pelo simultâneo desempenho pelas estruturas desta última (em especial Conselho de Estado), de atribuições jurisdicionais e de atribuições consultivas da Administração activa. Graças a esta dualidade de atribuições, ao modo de recrutamento dos magistrados e também de um certa porosidade de carreiras entre a magistratura administrativa e a administração activa, espera-se que o juiz administrativo conheça bem a Administração a fim de que a sua justiça se cole à realidade. A estreita proximidade, verificada no sistema francês, entre justiça administrativa e activa não afectou, porém, um estremado respeito dos tribunais administrativos pelo campo próprio da actuação da última.

Em suma, pode hoje concluir-se que a revitalização, em França, do Direito Constitucional graças à sua substanciação, em parte, devida, à actuação jurisprudencial do Conselho Constitucional, foi um fenómeno evolutivo absorvido de forma positiva pela jurisprudência administrativa. Tendo sofrido novos condicionamentos, esta adquiriu no entanto bases mais sólidas, definidas e diversificadas. No fundo, foi o Direito Administrativo que cresceu, ganhando um novo e importante segmento: o Direito Administrativo Constitucional, ou Direito Constitucional da organização e funcionamento e das situações materiais da Administração Pública. Em consequência disso, há todo um controlo de constitucionalidade dos actos administrativos que hoje se desenvolve, designadamente na base de uma parametricidade directa das normas constitucionais sobre o conteúdo de actos discricionários.

Após decisões do TEDH como o arrêt Procola e os arrêts Lobo Machado e Vermeulen, o Contencioso Administrativo francês vê indirectamente ameaçada a sua identidade na figura paradigmática do Conselho de Estado. O futuro dirá se os tribunais e o legislador francês, vão, como até agora, manter a energia e a criatividade necessárias para defender o direito à existência do seu modelo, hoje minoritário, contra o juridismo abstracto de certa jurisprudência europeia rasoirante e desatenta aos níveis de protecção jurisdicional efectivamente proporcionados através de um percurso fundador revestido de uma forte autenticidade institucional.

A história do Contencioso Administrativo francês é feita de uma gradual evolução institucional em cujo decurso a progressiva democratização da sociedade política encontrou paralelo no reforço dos poderes do juiz administrativo, por iniciativa deste através da via jurisprudencial. Não é assim de estranhar que, na Alemanha, a fundação do Contencioso Administrativo e o seu desenvolvimento, em especial na segunda metade do século XX, hajam representado sobretudo o fruto da vontade do legislador, seguindo um caminho aberto por profundos e, por vezes, impetuosos debates doutrinários. Na primeira metade do século XIX, a influência da interpretação francesa do princípio da separação de poderes conduziu, na Alemanha (primeiramente nos Estados do Sul), à progressiva redução da ampla competência dos tribunais comuns em matéria administrativa. Em seu lugar, foram-se instituindo, um pouco por toda a parte, mecanismos de controlo interno para efeito da fiscalização da legalidade administrativa pela própria Administração. Esta solução iria, no entanto, ser posteriormente considerada como insuficiente à luz de um novo conceito em gestação, que representou um dos fundamentais contributos da ciência jurídica germânica para o progresso da Humanidade: a ideia de Estado de Direito. A sequência lógica destas ideias abrangia a necessidade de não deixar o indivíduo desamparado, quando em conflito isolado com o Poder Administrativo, só alguém com a independência do juiz lhe poderia assegurar, nessa situação, o respeito dos seus direitos, impedindo o despotismo e o arbítrio de qualquer tipo. Pode dizer-se que, desde meados do século XIX, a opinião pública alemã mais esclarecida aceitava a necessidade de uma fiscalização jurisdicional da legalidade administrativa.

Os tribunais administrativos eram, na Alemanha, um fruto de Estado de Direito Liberal, cujas linhas basilares a Weltanschauung do nacional-socialismo repelia. Em face da rejeição global da separação de poderes, dos direitos fundamentais e das garantias formais, só restava ao Contencioso Administrativo assumir uma nova razão de ser ou desaparecer, mas a rápida sucessão dos acontecimentos entre 1933 e 1945 não deu tempo à tomada de uma decisão consequente. Ele manteve-se pois como uma contradição não resolvida. Multiplicaram-se entretanto as categorias de actos políticos, insusceptíveis de controlo judicial, sem que a jurisprudência quisesse ou ousasse sequer restringir este conceito. Viram-se coisas estranhas, como a entrega da vice-presidência do Tribunal Administrativo da Prússia (a cúpula do sistema criado sob a égide de von GNEIST) a um chefe de brigada das SS, naturalmente defensor da ideia de que o tribunal deveria seguir sem quaisquer limitações a linha política traçada pelo “Führer”. E, embora este fosse um caso aberrante, a verdade é que, de um modo geral, a posição da magistratura dos tribunais administrativos em face dos casos limite terá reflectido aquilo que o Professor STOLLEIS considera como uma tendência então ainda marcada, enraizada na história do Contencioso Administrativo alemão, de o juiz se considerar mais como um servidor do Estado do que como titular de um Terceiro Poder, legitimado pela soberania popular. Em contrapartida, também se deve reconhecer que, na medida em que o direito positivo da época o consentia, a maioria das decisões se manteve no quadro dos princípios e da linha jurisprudencial do período liberal.

Segundo as perspectivas actuais do Contencioso Administrativo Alemão, após o termo da II Guerra Mundial, tiveram lugar, nas zonas de ocupação americana, britânica e francesa, iniciativas separadas de reconstituição de um sistema de contencioso administrativo. A unificação do sistema principiou efectivamente por uma lei que, em 1952, criou o Tribunal Administrativo Federal, supremo tribunal federal para a jurisdição administrativa. Em 1960, foi publicada, a Leis dos Tribunais Administrativos, que constitui um verdadeiro código do contencioso administrativo, nos planos organizatório e processual. O Direito Constitucional e a lei ordinária configuram os tribunais administrativos como uma parte do poder judicial e não como órgãos da Administração especializados no controlo jurisdicional da legalidade administrativa: a Administração é hetero-sindicada. Os tribunais administrativos alemães dividem-se em gerais e especiais.

Não obstante tudo quanto antecede, é um facto que, quando comparado com os outros sistemas de direito administrativo, o alemão prima pela configuração de aspectos do controlo em torno de uma questão de ofensa de direitos subjectivos. O direito subjectivo constitui, não apenas uma condição de acesso à jurisdição, mas delimita o âmbito do exercício da jurisdição. A simples violação objectiva do Direito não basta, sendo necessário para que a acção proceda que a actuação ilegal tenha resultado em violação de direito subjectivo. Mas, por muito que a doutrina e a jurisprudência tenham procurado estender o conceito de direito subjectivo, certo é que o acesso aos tribunais administrativos para litígios emergentes da actuação administrativa se verifica mais restringido na Alemanha do que, na França. Para certos autores, essa é aliás, uma forma de compensar a maior intensidade do controlo de modo a não tornar o ambiente administrativo irrespirável e a tarefa dos tribunais incomportável: maior intensidade de controlo, sim, mas controlo restringido a um menor número de situações. Não é assim raro que, depois de o tribunal haver conscienciosamente apurado em profundidade a ilegalidade do acto administrativo, negue provimento ao pedido de anulação com fundamento na falta de carácter de protecção individual da norma violada. De outras vezes, as acções são desde logo rejeitadas, uma vez que a ofensa de direito subjectivo é também requisito de legitimidade. O desinteresse alemão pela realização jurisdicional do princípio da legalidade tem pois sido criticado por pôr em causa, quando se trata de fazer aplicar o Direito Comunitário pelos tribunais administrativos, a efectividade deste, nomeadamente no domínio da concorrência. O problema materializa-se sempre que são violadas normas nacionais de transposição que não concedem direitos subjectivos à luz da teoria da protecção normativa. Verifica-se, em suma, que o Direito Comunitário requer o acesso dos particulares à jurisdição administrativa com uma base mais alargada do que a fornecida pela teoria alemã da protecção da vítima. No Direito processual comunitário, basta que à violação da norma jurídica corresponda um interesse, mesmo que fáctico, do particular na destruição do efeito constituído. E este interesse apenas releva em sede de legitimidade e não no da procedência do pedido. Deste modo, é forte a pressão para alargar, na justiça administrativa alemã, a tutela jurisdicional a casos como os de terceiros cujas situações individualizadas não são visadas pela norma jurídica violada pelo acto administrativo que as afectou ou os das associações representativas de interesses comuns a certos estratos populacionais. Uma maneira de o fazer, sem ter de pôr de lado a referência à ideia de direito subjectivo, seria a de entender o conceito de lesão de direitos fundamentais às lesões fácticas, ou seja, a todas as onerações factuais da autonomia individual. Mas, embora se possa dizer que, dessa forma, o alargamento das possibilidades processuais não porá em causa a subjectividade do Direito, a verdade é que se caminhará (aliás intencionalmente) para soluções precisamente idênticas àquelas que, nos sistema comunitário e no francês, assentam numa visão mista subjectiva-objectiva da função da jurisdição administrativa.

Evolução do Contencioso Administrativo Português;

O antigo regime conhecia institutos processuais que serviam para a impugnação de actos lesivos praticados pela Administração (central e local). O autoritarismo pombalino havia, porém, restringido a possibilidade do seu emprego para tal fim e, de qualquer modo, esses institutos não assentavam ainda nem no reconhecimento de um princípio geral de legalidade administrativa substantiva, nem no da virtualidade da submissão de quaisquer actos concretos de autoridade ao reexame jurisdicional da sua conformidade com normas de lei. Por estas razões, pode considerar-se como primeiro marco da história do Contencioso Administrativo português o Decreto nº23, de 16 de Maio de 1832, isto é, o diploma referendado por Mouzinho da Silveira, em Ponta Delgada, que estabeleceu as bases da reforma administrativa liberal. Nesta história de mais de século e meio, podem distinguir-se quatro fases: a segunda iniciou-se em 1933, a terceira em 1974 e a quarta, autonomiza-se da anterior graças ao carácter profundamente renovador da reforma do Contencioso Administrativo de 2002-2003.

A primeira fase (1832-1933) caracteriza-se fundamentalmente pelos dados seguintes: a)cíclica hesitação entre o modelo monista (atribuição aos tribunais comuns da jurisdição nas causas administrativas) e o modelo dualista (existência paralela de uma justiça comum e de um contencioso administrativo); b) vagarosa transição do sistema do administrador-juiz (ou da jurisdição reservada) para o sistema dos tribunais administrativos; c) lenta evolução do sistema de contencioso por atribuição ou enumeração para o de contencioso por definição; d) evolução de uma função subjectivista para uma função objectivista da jurisdição; e) tardia formulação de um regime processual específico; f) predominância do contencioso da administração local.

Parece-nos que a segunda fase da história do Contencioso Administrativo português, que se prolonga desde 1933 a 1974, se singulariza à luz das seguintes características mais marcantes: a) consolidação de um modelo dualista de tribunais ordinários e tribunais administrativos, isto é, da existência paralela de uma justiça comum e de um Contencioso Administrativo; b) titularidade de jurisdição própria pelos tribunais administrativos; c) estruturação complexa e desempenho de funções meramente jurisdicionais pelo Supremo Tribunal Administrativo; d) aquisição, pelo contencioso por definição; e) constitucionalização da garantia de recurso contencioso de anulação dos actos administrativos definitivos e executórios; f) larga dominância da função objectivista do Contencioso Administrativo; g) aperfeiçoamento de regimes processuais específicos diferenciados para a administração central e para a administração local no tocante à impugnação de actos administrativos; h) surgimento incipiente da arbitragem.

A Revolução de 25 de Abril de 1974 pôs fim ao regime político do Estado Novo e abriu as portas à institucionalização de um Estado de Direito democrático em Portugal. Depois de uma conturbada transição, a revitalizada natureza da República ganharia alicerces com a entrada em vigor da Constituição de 1976. Mesmo, porém, no decurso do contexto constitucional provisório e, aliás, logo no seu inicio, o Contencioso Administrativo experimentou uma metamorfose de amplas consequências no futuro próximo não obstante a sua aparência discreta, que quase se diria reduzida a uma questão de rearranjo de atribuições entre ministérios. Em 14 de Maio, a Junta de Salvação Nacional aprovou a Lei Constitucional nº3/74 para definição da estrutura constitucional transitória. Dispunha-se, no nº1 do respectivo artigo 18º, que “as funções jurisdicionais serão exercidas exclusivamente por tribunais integrados no Poder Judiciário”. Em face deste breve enunciado, três entendimentos poderiam ser extraídos. Poderia considerar-se que, mesmo antes de 1974, os tribunais administrativos já deveriam ser vistos como órgãos de jurisdição, isto é, como órgãos da função judicial em sentido substancial. Segundo este ponto de vista, ao passo que as Constituições liberais previam um poder judicial formado pelos tribunais comuns ou de jurisdição ordinária, a Constituição de 1933 substituiria esse conceito pelo de função judicial, levada pelo seu espírito de reacção contra o principio da separação de poderes. Paradoxalmente, teria assim aberto caminho a um conceito mais amplo, englobando todos os órgãos incumbidos do desempenho da função jurisdicional em sentido material. Ora, uma vez que a Lei Constitucional restaurava o Poder Judicial com o objectivo de assegurar a todos esses órgãos a sua independência e a sua dignificação, independentemente de serem tribunais judiciais ou tribunais especiais, como era o caso dos tribunais administrativos; quanto a estes, os juízes deveriam ter a plenitude das garantias da magistratura e que deveriam estar enquadrados administrativamente num único Ministério com todos os outros tribunais: o Ministério da Justiça; não se coloca dúvidas no que respeita à convergência deste entendimento com o Princípio da Separação de Poderes, afirmar que o Contencioso Administrativo apresenta, nomeadamente em Portugal um regime claramente fundado na herança do Antigo Regime, constitui uma negação a toda a sua evolução histórica, como tem sido fundamentado, quer pelos exemplos dos ordenamentos francês e alemão, se bem que, no sistema, os resquícios do Antigo Regime sejam evidentes.

No que se refere à evolução no nosso ordenamento juízo, um segundo entendimento, em relação à fase de 1933-1976, surge como relevante o facto dos tribunais administrativos, até então, teriam constituído um segmento orgânico da Administração Pública, à maneira francesa e por força do modo da sua criação no século XIX e da sua evolução desde ai ate 1974. Mas isso não impedia o legislador constitucional de querer transferi-los para o Poder Judicial, que ele de novo instaurava como um dos poderes do Estado. Houve ainda quem tivesse professado um terceiro entendimento, segundo o qual os tribunais administrativos se teriam tornado uma figura supervenientemente inconstitucional, contudo, o legislador provou o contrário, porque se tratava de assegurar a incorporação dos tribunais administrativos no Poder Jurisdicional, e, assim o Decreto nº250/74, de 12 Junho, veio integrar o STA e as auditorias administrativas no Ministério da Justiça, à semelhança do que sucedia com os tribunais ordinários ou comuns. A constitucionalização da participação do juiz administrativo no Poder Jurisdicional justificava que se considere aberta a partir daí uma nova fase da história do nosso Contencioso Administrativo. Num momento de viragem constitucional em que tanta coisa era posta em causa, afastou-se a funesta tentação do retorno à cíclica extinção dos tribunais administrativos para, sob a força das realidades, os ter de restaurar mais tarde. Por outro lado, desvaneceram-se todas as dúvidas quanto à implantação orgânica dos tribunais administrativos, se é que se não pôs efectivamente termo a uma sua natureza de órgãos jurisdicionais da Administração. Por fim criou-se uma base constitucional para a parificação dos estatutos do juiz administrativo e do juiz dos tribunais comuns. Sem prejuízo de um grau de continuidade capaz de nos manter perante a instituição vinda do passado, a verdade é que, em vez de algumas modificações parcelares inscritas sobre um travejamento nuclear inalterado, o sistema adquire, a partir de 2004, um perfil que em boa medida se já não sobrepõe àquele que era ainda o seu no momento da viragem de século. Pode, pois, concluir-se que terminou aí o período iniciado em 1974.

Apesar de inúmeras inovações, os diplomas de 2002/2003 não puseram fim à velha instituição: a subsistência dos três grandes pólos matriciais do Contencioso Administrativo (ordem jurisdicional administrativa, jurisdição materialmente administrativa e emprego de meios processuais predominantemente administrativos) revela-nos uma linha de continuidade das suas realidades basilares. A viagem no tempo quedar-se-ia, porém, interrompida antes da sua conclusão no momento presente se deixássemos em branco o último momento transicional. Há, pois, que considerar a Reforma de 2002/2003 enquanto instrumento portador de transformações de um tal significado qualitativo que sem dúvida se pode concluir que o sistema de contencioso evoluiu para um novo estádio da sua já longa História.

Para concluir, podemos dizer que, constitui uma verdade natural, que ressalta de toda esta discussão, é a de que não há, no momento em que vivemos, Estado de Direito sem jurisdição administrativa, isto é, sem a garantia efectivada de que os litígios emergentes de situações regidas pelo Direito Administrativo são passíveis de composição pelos tribunais. Esse é pois um imperativo ontológico do tipo de civilização jurídica do arco euro-atlântico de Estados de Direito em que Portugal se enquadra, o qual, como não podia deixar de ser, encontra eco na nossa Constituição. A garantia institucional da jurisdição administrativa enquanto realidade funcional, bem como a sua contra face constituída pelo Direito Fundamental à tutela jurisdicional administrativa efectiva, representavam, pois, dados assentes para o legislador de 2002/2003. Nem por isso, contudo, deixou este de dispor de uma ampla margem de discricionariedade no modo de concretização de tais directrizes constitucionais. O imperativo da existência de uma jurisdição administrativa não dispensa uma complexa tarefa de delimitação do respectivo campo objectivo. O papel do agente da definição dos limites sempre se repartirá entre o legislador ordinário e o juiz, nomeadamente o juiz dos conflitos de jurisdição. Mas a indispensável tarefa cartográfica do julgador em face de mutáveis fronteiras do Direito Administrativo material e organizatório não retira vantagem à delimitação legislativa, apoiada numa enunciação tão completa quanto possível dos institutos relevantes e estruturada segundo critérios de qualificação inteligíveis.

Elaborado por:

Luís Gomes Teixeira. Sub3. Nº15446