quinta-feira, 17 de dezembro de 2009

Comentário ao tema 7
O CPTA permite a impugnação de qualquer acto administrativo com eficácia externa, mesmo que inserido num procedimento administrativo; abandona-se, assim, o tradicional conceito de definitividade como pressuposto de impugnabilidade de acto administrativo. Quanto a esta consequência da reforma de 2004 parece não haver quem discorde. E de unanimidade se trata, também, no caso da afirmação contida na primeira parte do texto submetido a comentário: “Nem o diploma preambular, nem o CPTA, tomam posição expressa (sublinhado meu) quanto às múltiplas disposições legais avulsas que prevêem mecanismos de impugnação administrativa necessária”. Porque, habitualmente, as questões de direito provocam, na doutrina, divergências sérias e fundamentadas (querelas doutrinais artificiais, que as há, não cabem neste comentário) é digno de registo depararmos com afirmações de Professores de Direito (personalidades que importam nesta hermenêutica arte) que não mereçam contestação dos seus pares.
Mas, à unanimidade na constatação de inexistência de posição expressa na matéria em apreço, corresponde diversidade interpretativa quanto às consequências, não para o contencioso administrativo em si, mas para os cidadãos:
1. Para o Prof. Doutor Mário Aroso de Almeida – que podemos considerar o intérprete vencedor da reforma administrativa de 2004, já que a esmagadora maioria da jurisprudência alinha com as posições doutrinárias do ilustre professor – o CPTA «não tem (…) o alcance de revogar as múltiplas determinações legais avulsas que instituem impugnações administrativas necessárias, disposições que só poderiam desaparecer mediante disposição expressa que determinasse que todas elas se consideram extintas». Assim, conclui o ilustre professor, «As decisões administrativas continuam (…) sujeitas a impugnação administrativa necessária nos casos em que isso esteja expressamente previsto na lei, em resultado de uma opção consciente e deliberada do legislador, quando este a considere justificada».
Portanto, o ilustre professor entende que continuam em vigor as disposições de direito substantivo que, em leis avulsas, prevêem mecanismos de impugnação administrativa necessária e, além disso, admite que o legislador ordinário venha a consagrar, após a entrada em vigor do CPTA, normas que estabeleçam o recurso hierárquico necessário para efeitos de impugnação contenciosa.
2. O Prof. Doutor Vasco Pereira da Silva não acompanha a interpretação minimalista do Prof. Doutor Mário A Almeida e entende mesmo que tal posição contraria a Constituição da República Portuguesa e o regime jurídico consagrado no CPTA. O Prof. Doutor Vasco Pereira da Silva, depois de provar que a única razão de ser da exigência do recurso hierárquico necessário era a de permitir o acesso ao juiz, perante a não exigência desse pressuposto processual de impugnação de actos administrativos no actual Código de Processo, conclui que a «exigência de recurso hierárquico em normas avulsas deixa de ter consequências contenciosas, pelo que se deve considerar que (pelo menos nessa parte) tais normas caducam, pelo desaparecimento das circunstâncias de direito que as justificavam. Caducidade esta, por falta de objecto, que acresceria ao fenómeno (…) de caducidade decorrente da inconstitucionalidade da exigência do recurso hierárquico necessário (por violação do conteúdo essencial do direito à tutela plena e efectiva, assim como dos princípios da divisão de poderes e da descentralização)».
E vai mais longe este ilustre professor: apenas a título de hipótese académica, e absurda, admite que o legislador ordinário venha, contra o sistema jurídico no seu todo, consagrar soluções ilógicas perante as soluções da reforma de 2004, além de inconstitucionais, pois a criação dessas “garantias administrativas necessárias desnecessárias” não teria qualquer efeito útil porque desprovida de consequências contenciosas.
Para os cidadãos, a favor e em nome dos quais se efectuou a reforma do contencioso administrativo, não é indiferente o regime, tanto pelo maior ou menor grau de complexidade como por questões de certeza e segurança jurídicas. Mas, o que se lhes apresenta incompreensível, é que o legislador não tenha conseguido realizar o devido juízo de prognose no sentido de antecipar qualquer das interpretações possíveis (as maioritárias, com breves referências acima, centradas nas posições dos Professores citados, e outras, minoritárias e não esboçadas neste comentário) daí retirando as devidas consequências, nomeadamente a de que era necessária pronúncia expressa, preferencialmente no diploma preambular ao CPTA, sobre as exigências de recurso hierárquico necessário em vigor e a opção legislativa para o futuro nessa matéria.
Recorde-se que a impugnação administrativa tem ou não efeito suspensivo de eficácia do acto administrativo impugnado, conforme seja necessária ou facultativa, de acordo com o art.º 170.º do Código do Procedimento Administrativo. E, se importa ao particular pleno acesso à justiça administrativa, também lhe interessa a capacidade de impugnação administrativa junto dos órgãos da Administração Pública, não só por ser gracioso o mecanismo, mas essencialmente porque constitui instrumento mais próximo e célere e constitui mais uma instância onde poderá tentar fazer valer os seus direitos.
Um sistema em que, independentemente das posições doutrinárias sobre a (des)necessidade de recursos hierárquicos necessários, o efeito suspensivo da impugnação do acto não é uniforme, é um sistema que oferece insuficiente segurança jurídica.
Os regimes jurídicos do procedimento administrativo e do processo administrativo necessitam de rápida compatibilização que permita satisfazer todos os interesses em jogo, nomeadamente:
o Do particular, garantindo-lhe pleno acesso à impugnação administrativa sem que isso constitua óbice de acesso ao tribunal, desde que verificados os pressupostos processuais;
o Da Administração que, sem prejuízo de satisfazer as pretensões do particular pondo fim ao litígio, teria oportunidade sucessiva de cumprir a legalidade e o interesse público;
o Do bom funcionamento do sistema que ofereceria maior susceptibilidade de resolução administrativa, tornando-o mais eficaz;
A maior probabilidade de prosseguir tais objectivos atingir-se-ia, na minha perspectiva, com a revogação expressa de todas as disposições que prevêem o recurso hierárquico necessário – sem prejuízo de sua consagração especial, atentos os princípios da unidade na acção administrativa (art.º 267., n.º 2 CRP), da legalidade administrativa (art.º 266º, n.º 2 CRP) e da repartição eficiente dos poderes públicos – e atribuição de efeito suspensivo a todas as garantias administrativas, com possibilidade revogação quando o autor do acto sustente fundamentadamente que a sua não execução imediata causa grave prejuízo ao interesse público.
João Pedrosa N.º 16421