quinta-feira, 17 de dezembro de 2009

Tema # 1

“ [...] o Contencioso Administrativo, muito mais do que «uma “invenção liberal”, determinada pelo princípio da separação de poderes», é uma «herança do Antigo Regime» [...]”
Vasco Pereira da Silva


O Contencioso Administrativo surge com a Revolução Francesa. Administrar e julgar eram tarefas que se confundiam . A época liberal dá relevo a concepções de índole objectivista, sendo estas, efectivamente, a pedra angular da origem histórica do Direito Administrativo.

O Direito Administrativo aparece inicialmente como um privilégio de foro da Administração. O objectivo do “velho” contencioso fundamenta-se num sistema de garantias em prol dos poderes públicos, assente na separação de poderes.

A criação de uma jurisdição administrativa própria que, retira aos tribunais comuns a resolução dos litígios jurídico-administrativos, sustenta-se na ideia de que “julgar a Administração ainda é administrar” e baseia-se na desconfiança dos revolucionários franceses contra os tribunais comuns, não tendo, por isso, qualquer intuito garantístico.

Neste sentido, em nome do princípio da separação de poderes, implementa-se um sistema assente na promiscuidade entre o poder administrativo e o poder judicial, ou seja, os órgãos da Administração julgam-se a si próprios, assegurando em primeiro plano a primazia da Administração como Poder do Estado e não a protecção dos particulares que, são considerados súbditos ou administrados, não lhes sendo reconhecidos direitos, perante a Administração, tendo nomeadamente, o dever de colaborar com a Justiça.

A autonomia do Direito Administrativo consagra-se com o triste caso de Agnés Blanco – uma criança atropelada por um vagão de um serviço público (de tabaco) – em que, perante um conflito negativo de jurisdições – tanto o tribunal de Bordéus como o Conselho de Estado se declaram incompetentes, para julgar a referida causa – o Tribunal de conflitos é chamado a decidir.

A leitura da sentença tem contornos incongruentes, na medida em que, o Tribunal de Conflitos vem dizer que a competência para decidir cabia à ordem administrativa, resolvendo o conflito de jurisdições, contudo, o facto de estar em causa um serviço público, a indemnização a ser atribuída não podia ser regulada pelo direito aplicável às relações entre particulares, ou seja, a solução seria a criação de um “direito especial” para a Administração, adquirindo esta um “estatuto de privilégio”.

Neste sentido, a justiça foi a denegação de um direito de indemnização aos pais da criança.

Os acontecimentos supra referidos, serviram de inspiração ao nosso sistema de justiça administrativa que, assenta historicamente na ideia da separação de poderes, de origem francesa, rejeitando, por incompatibilidade com o referido princípio, a hipótese dos tribunais judiciais julgarem os comportamentos da administração pública.

É com base na separação de poderes que surge a dualidade de jurisdições; a jurisdição administrativa, que se destina à revisão da legalidade de decisões da administração pública, sendo a própria, a solucionar os litígios emergentes de relações jurídico-administrativas e a jurisdição comum, que tem a seu cargo dirimir os litígios entre particulares.

Desta forma, o modelo da Administração Pública do Estado Liberal, é um modelo autoritário, em que a Administração se encontra investida de “imperium”, tendo legitimidade para aplicar e executar a lei através de actos unilaterais coactivos, ou seja, é a Administração que ordena, proíbe, autoriza, concede e sanciona.

A centralização neste modelo de acto administrativo é determinante para que, a jurisdição administrativa se oriente na direcção de uma Administração Agressiva.

Assim, é a doutrina do século XIX e do início do século XX que teorizando o conceito de acto administrativo, faz dele a figura central da “dogmática do Estado de Direito”. Tendo em conta a relevante construção jurídica, quanto ao acto administrativo, importa salientar nomes como Maurice Hauriou, Professor de Direito em Toulouse – 1856/1929 – e, Otto Mayer, jurista alemão – 1846/1924.

Hauriou assemelha o acto administrativo ao negócio jurídico, adoptando uma noção ampla do mesmo, dando contudo, ênfase à decisão executória, na medida em que, entende o autor, esta característica é a manifestação máxima do poder administrativo, ou seja, advém de prerrogativas de execução – direitos do poder público – que se excedem quando comparadas ao direito comum, dado que o privilégio da acção oficiosa, obtida através do procedimento da decisão executória, permite à Administração pública exercer os seus direitos através de um procedimento extra-judicial, rápido e vantajoso.

Com uma construção jurídica diferente, Mayer advoga que, o acto administrativo se assemelha à sentença judicial e, neste sentido ambos representam “o modo como o poder público se torna eficaz”, definindo esse poder como uma “manifestação da Administração autoritária que determina qual o direito aplicável ao súbdito no caso concreto”. Mayer, defende então que, tanto a execução coactiva do acto administrativo, como a da sentença, dependem directamente da qualidade do “poder público”.

A evolução do Contencioso Administrativo, segue paulatinamente, o sentido da sua jurisdicionalização, ou seja, se na sua génese está agrilhoado à Administração, aos poucos vai-se libertando, adquirindo a natureza de uma jurisdição autónoma. O percurso do Contencioso Administrativo, acompanha a instauração do modelo de Estado Social de Direito – iniciado ainda na transição do estado liberal para o Social, finais do século XIX e começo do século XX – consolidando-se com a efectivação do Estado-Providência que, se desenvolve num contexto de devastação europeia, devido às duas grandes guerras mundiais do século XX.

Atente-se que em Portugal, o regime político, autoritário e corporativista instituído, após a Revolução Nacional de 28 de Maio de 1926, designado por Estado Novo, propende à adopção da concepção autoritária, que na esteira das construções jurídicas de Hauriou e Mayer, exerce influência nas orientações constitucionais de 1933.

Cabe ao Professor Marcello Caetano, enquanto pensador científico, a função de redigir, particularmente, a legislação sobre o contencioso administrativo, nomeadamente o Código Administrativo de 1936/40, a Lei Orgânica (1956) e, o Regulamento do Supremo Tribunal Administrativo (1957). Consagra-se então, na nossa legislação administrativa e no Contencioso administrativo, o apadrinhamento do acto administrativo definitivo e executório, fundado na concepção clássica de matriz positivista, pelo Professor que, curiosamente, não renega algumas concepções jurídico-administrativa de origem liberal.

Sendo coerente, no contexto político, autoritário e corporativista, a aplicação do tipo de acto administrativo, com as características definitivas e executórias, o mesmo não se enquadra na realidade pós-Revolução, ou seja, não se entende como é que o legislador constitucional, mantém até 1989 a protecção constitucional do acto administrativo de forma definitiva e executória, tendo em conta que o afasta somente da Lei Fundamental, após a revisão de 89. Assim como, também não faz sentido nenhum, esta tipicidade de acto continuar a vigorar na legislação processual até 2004, mantendo as características da definitividade e da executoriedade, como recorribilidade dos actos administrativos.

Este incremento administrativo legal deve-se, possivelmente, a um enraizamento cultural, por parte dos nossos governantes, do conceito de Estado como elemento unificador do poder, que dá origem a tipos de regime autoritários ou políticos liberais.

O advento do Estado Social, transformou juridicamente o modelo de Justiça no Direito Administrativo, ou seja, o novo papel desempenhado pelos poderes públicos na vida da sociedade conduziu a um aumento quantitativo e qualitativo, das funções estaduais. A Administração, passa a ser Prestadora de bens e serviços que servem o interesse público, estabelecendo relações jurídicas duradouras entre os particulares e as autoridades públicas, tornando-se claro que ao poder e à liberdade é necessário acrescentar responsabilidade se, na verdade, se pretende atingir o aperfeiçoamento da sociedade.

Um dos grandes contributos do século XX para a compreensão e consciencialização da vida social e política reside no facto do Estado de Direito assentar numa ideia de equilíbrio entre poder/liberdade/responsabilidade. Estes conceitos emergentes da comunicação interligam a sociedade numa série de relações estreitas, através de proposições de dever cujo cumprimento funda o clima de confiança indispensável à concretização da paz social através da justiça, finalidades por excelência do Estado de Direito.




BIBLIOGRAFIA:


PEREIRA DA SILVA, V., O Contencioso Administrativo no Divã da Psicanálise – Ensaio Sobre as Acções no Novo Processo Administrativo, Ed. Almedina, 2009

CAUPERS, João, “Introdução ao Direito Administrativo”, Ed. Âncora, 2007, 9ª edição


Maria Carlos Brito Silva - 17052